ESPECIAL: Mortes violentas, UPPs e prisões em discussão em evento no Rio

Homicídios caem no Rio de Janeiro; especialistas avaliam política de segurança pública e sugerem alternativas


Giancarlo Summa, Diretor do UNIC Rio, ao lado da Juíza federal e conselheira do CCJF, Márcia Helena Ribeiro Pereira Nunes. Ambos participaram da abertura do evento, juntamente com o Presidente do Rio de Paz, Antônio Carlos Costa

Os casos de homicídios no Estado do Rio de Janeiro vêm diminuindo de forma significativa no Estado do Rio de Janeiro, embora seu número continue inaceitavelmente elevado, mas ainda parece cedo para creditar esta diminuição às Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) que estão sendo criadas na Capital. Esta foi uma das conclusões do 4° Fórum de Violência, Participação Popular e Direitos Humanos, que ocorreu no dia 21 de setembro, no Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF), centro do Rio de Janeiro. O evento, organizado em parceira pela ONG Rio de Paz, pelo Centro de Informação das Nações Unidas (UNIC Rio) e pelo CCJF, reuniu especialistas e militantes de direitos humanos para debater temas como as mortes violentas, o sistema prisional e as UPPs.

O Fórum foi organizado em coincidência do Dia Internacional da Paz, celebrado no mundo inteiro pela Organização das Nações Unidas, e foi aberto pela projeção de uma mensagem gravada do Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-moon. Assista aqui.

O Diretor do UNIC Rio, Giancarlo Summa, destacou a importância do tema do Fórum, afirmando que a ONU está empenhada no Brasil em favorecer a adoção de políticas públicas que permitam reduzir os índices de violência e coibir abusos por parte das autoridades, como os casos de execuções extrajudiciais de que foram acusados policiais militares e civis no Rio. Por esta razão, explicou Summa, para a ONU as UPPs são bem-vindas, pois inserem a questão social e a participação social como condição indispensável para a atuação da polícia.

A evolução dos índices de homicídios no Rio de Janeiro foi analisada pelo sociólogo Ignácio Cano, do Laboratório de Análise da Violência (LAV) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Em julho de 2010, em comparação com o mesmo mês em 2009, houve uma queda de 18,4% nos casos de homicídios no Estado. E em junho deste ano,foi registrado o menor número de homicídios desde 1991, quando os dados começaram a ser monitorados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), um órgão vinculado à Secretaria de Segurança Pública do Governo do Estado.


Jorge Antonio Barros, jornalista e especialista em segurança pública, mediador da mesa sobre as Unidades de Polícia Pacificadora

De acordo com o ISP, houve uma redução de cerca de 30% nos homicídios dolosos entre 2005 e 2010. Cano comparou os dados do Instituto com os números do Sistema Único de Saúde (SUS) relativos ao Estado. Ele atestou que parece haver de fato uma redução, porém pediu cautela na confirmação, pois os dados do SUS ainda são parciais.

O Fórum contou com a presença do Delegado da Polícia Civil e Coordenador do Núcleo de Presos da Polinter no Estado do Rio de Janeiro, Orlando Zaccone; do Comandante das UPPs, Coronel Robson Rodrigues da Silva; e do jornalista e Editor do jornal O Globo, Jorge Antonio Barros, entre outros convidados.

Qualidade dos dados precisa melhorar, diz pesquisador


Ignácio Cano, sociólogo, e Ana Paula Miranda, antropóloga

Segundo Ignácio Cano, os dados estatísticos sobre pessoas mortas ainda são mal classificados, o que poderia mascarar o número real de homicídios e alterar outras taxas de crimes não letais. Caso, por exemplo, dos autos de resistência – mortos pela polícia em supostos confrontos. Ele lembrou que ocorreram quase oito mil mortes nessa modalidade nos últimos oito anos. “Auto de resistência é inaceitável, não tem embasamento legal”, afirmou Cano.

Para o pesquisador, os números de homicídios continuam assustadores: 56 mil em oito anos no Estado, também nos últimos oito anos. Ele defendeu metas para a redução das mortes e uma mudança de atitude da política de segurança no Estado. “Tem que mandar os batalhões [da PM] parar de matar. Tem que dizer para eles: se virem, mas parem de matar”, afirmou Cano. Ele apontou uma mudança de posicionamento das autoridades do Estado, devido à aproximação de grandes eventos internacionais. “O governo não pode mais fazer o discurso: ‘Vamos matar os inimigos e, no intervalo da guerra, venham participar dos jogos’.”

Citando casos recentes de assassinatos de civis inocentes realizados por policiais militares, o pesquisador classificou como “esquizofrênico” o comportamento da PM. “As UPPs, que ainda possuem um alcance limitadíssimo, convivem com a velha PM, cheia de problemas”. Segundo Cano, já há a modalidade do tráfico de drogas sem armas: estas ficariam guardadas para uso somente quando necessário e, quando a Polícia Militar incomodar, paga-se propina ou um bom advogado. Falando sobre a violência policial, questionou: “Tem um dado que não existe e eu gostaria de ter: Quantos policiais no Rio já mataram alguém? Nunca conseguimos isso”.

Ignácio Cano destacou que, sem uma luta efetiva contra a corrupção policial – e não apenas dentro da polícia –, será muito difícil resolver os demais problemas. Para o professor da UERJ, são três as prioridades para resolver estes problemas: Ampliação da política de segurança social para todos; queda na letalidade, com metas a ser alcançadas; e investigação mais eficiente.

Antropóloga pede qualificação dos inquéritos policiais

Na mesma mesa, que tratou do tema “Mortes violentas”, a antropóloga Ana Paula Miranda condenou o discurso presente na sociedade em que supostamente existiriam o que ela denominou como “seres matáveis”. Ex-Diretora do ISP, Miranda ressaltou a necessidade de se ter um olhar para as pessoas que foram mortas e qualificá-las.

“Há diferenças entre a morte e os mortos. A ‘paz de cemitério’ precisa de um olhar: precisamos olhar para os mortos. Quem são eles?” Assim como Ignácio Cano, Miranda sugeriu que os inquéritos policiais fossem melhorados, como forma aumentar a eficiência da polícia e consequentemente diminuir a impunidade.

A pesquisadora não pareceu otimista em relação às atuais políticas públicas no setor. “A polícia continua fazendo as mesmas coisas. É isso o que vemos e escutamos das pessoas. Existem seres “matáveis’.” Ela questionou o discurso bélico do Governador Sérgio Cabral e de autoridades do Estado. “Se o governador acha que ‘favela é fábrica de marginal’, não vai achar que auto de resistência tem que acabar”.

Comandante da UPP aponta rearticulação do Estado

O Coronel Robson Rodrigues defendeu o projeto das UPPs, apontando que o trabalho é preventivo e foca em jovens de 13 a 24 anos – considerado um grupo social de maior risco. Para Robson, as UPPs estão invertendo valores antigos em que a identidade dos militares era construída por uma oposição aos civis, o que levava ao distanciamento. Ele destacou que o processo de seleção dos capitães de UPPs é criterioso e leva em conta a disciplina, a vocação e a sensibilidade comunitária do profissional.

Entrevista com o Comandante das UPPs, Coronel Robson Rodrigues:
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O Coronel comentou também sobre o projeto UPP Social, da Secretaria de Assistência Social, que está promovendo um diálogo com as comunidades para identificar demandas e ofertas de serviços e articular programas de órgãos públicos das três esferas de governo, da iniciativa privada e de ONGs.

Polícia comunitária: um histórico

Pesquisadora da Universidade Cândido Mendes (UCAM), Jacqueline Muniz fez um amplo panorama histórico acerca da polícia comunitária no Estado do Rio de Janeiro, destacando que foi apenas no primeiro governo Brizola (1983-1987) que o conceito foi efetivamente aplicado, porém de forma tímida e inadequada. Para ela, o Estado precisa deter o território de uma determinada comunidade e conjugar repressão, prevenção e serviços sociais. As UPPs, afirmou, são uma evolução de todos os erros cometidos por seguidos governos, ao tentar implantar programas parecidos.


Giancarlo Summa, Diretor do UNIC Rio (à esquerda); Robson Rodrigues da Silva – Coronel da Polícia Militar do Rio de Janeiro e comandante das Unidades de Polícia Pacificadoras; e Jacqueline Muniz, pesquisadora da UCAM e Sócia fundadora da Rede Latino-Americana de Policiais e Sociedade Civil

Sócia-fundadora da Rede Latino-Americana de Policiais e Sociedade Civil, Jacqueline apontou o medo como “rentável”, afirmando que “governar no crime é milionário”. Ao mesmo tempo, “o Rio de Janeiro nunca recebeu tanto dinheiro para a segurança pública como agora”.

Para a antropóloga, foi decisivo para o sucesso do projeto das UPPs o alinhamento político das instâncias de governo. Por isso, a sociedade deve estar atenta para o caráter provisório das alianças políticas. Ela ressaltou a necessidade de haver um pacto federativo na segurança pública, a exemplo das áreas de saúde e da educação. “Tem que virar política pública, que não dependa das mudanças de governo”.

Outro fator importante da renovação da polícia é a valorização do conhecimento, com policiais formados em universidades e cursos de polícia comunitária. “Os policiais aprenderam a falar ‘cidadanês’, em vez de impor o ‘policialês’”, apontou Jacqueline, que fora professora do Coronel Robson em um curso de pós-graduação.

“Eu não acredito em boa cadeia”

Coordenador do Núcleo de Presos da Polinter no Estado do Rio de Janeiro, o delegado da Polícia Civil Orlando Zaccone criticou duramente o atual sistema prisional, que segundo ele, em longo prazo, precisa acabar. “Enquanto não dá para fazer isso, é essencial valorizar as penas alternativas, que realmente reeducam. Existe essa crença de que o sistema prisional pode reinserir alguém. É o mesmo que acreditar que alguém pode aprender a jogar futebol dentro de um elevador”.


O Delegado de Polícia Civil do Rio de Janeiro, Orlando Zaccone, observado pelo Presidente do Rio de Paz, Antônio Carlos Costa

Em sua intervenção, Zaccone fez uma ampla contextualização do tema. “Todo modelo de segurança é vendido como avanço do sistema anterior. No entanto, a pena de castigos corporais livrava da morte, na época de Jesus Cristo. Hoje, o sistema prisional não livra. Isso é chamado de ‘progresso’.”

O descaso com os presos foi um tema sobre o qual Zaccone insistiu muito, a partir de sua experiência pessoal. “Qual é o impacto de uma morte de cárceres no sistema prisional? Nenhum. Não temos nem sequer números”, afirmou. “Por exemplo quando eu assumi na carceragem de Nova Iguaçu, descobri que ela não existia juridicamente. É como um campo de concentração”.

Zaccone defendeu enfaticamente uma política de redução de danos, como forma de dinamizar o sistema penal brasileiro. “Hoje, se um morador de rua é preso com uma pedra de crack, é preso como traficante. Estamos enchendo os cárceres de pobres. Temos que acabar com essa ideia de que a prisão vai acabar com o crime. Quanto mais se prende, mais crimes acontecem”, enfatizou.

O delegado também criticou os inquéritos policiais, que, em sua opinião, ainda são mal feitos. “Infelizmente a confissão ainda é meio de prova. Infelizmente, porque num Estado democrático isso não deveria acontecer”, afirmou.

Um dos principais pontos da intervenção de Zaccone girou em torno da criminalização dos pobres, observada diretamente em seu trabalho como delegado, e a incoerência na hora de aplicar as leis. “Digo, pela minha experiência empírica, que está ocorrendo, hoje, a criminalização da pobreza. Há um projeto nesse sentido. Dos nossos 450 mil presos no Brasil, metade são suspeitos, à espera de julgamento. É o quarto país no mundo com o maior número de presos em termos proporcionais, após Estados Unidos, Rússia e China. Em pouco tempo teremos mais presos provisórios do que definitivos. Quando a exceção vira regra, temos um problema”.

No Rio de Janeiro, há atualmente cerca de 28 mil presos, dos quais 3.000 estão na Polinter. “Nas delegacias, o único direito do preso é ter comida ruim”, acusou Zaccone.

Entrevista com o delegado da Polícia Civil Orlando Zaccone:

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Estigmatização do presidiário


O evento contou com os questionamentos do público e uma mãe cujo filho foi vitimado pela violência.

“Ninguém deixa de ser preso. Uma vez preso, será conhecido como ex-preso para sempre”. Com esta afirmação, a professora de criminologia da PUC Rio, Elizabeth Sussekind, descreveu um dos principais problemas do sistema prisional, do ponto de vista do presidiário: o preconceito. Pesquisas de Sussekind confirmam que a criminalização da pobreza é uma realidade. “São os pobres e negros que são presos, por meia dúzia de delitos escolhidos entre os 500 da legislação”. A resolução do problema, segundo a pesquisadora, não está próxima. “Antes se acreditava que estava se trabalhando para diminuir a criminalidade. Hoje, o cinismo já nos assola”, disse.


Elizabeth Sussekind, Professora de criminologia da PUC Rio e membro do conselho consultivo do Departamento de Pesquisas Judiciárias do CNJ

Relatos como “A gente sabe que sair daqui é mais fácil do que conseguir não voltar”, apontaou a pesquisadora – que também é membro do conselho consultivo do Departamento de Pesquisas Judiciárias do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – são comuns. “A estigmatização do ex-preso independe de pena e tempo na prisão: é uma marca eterna em sua comunidade, na família, no trabalho”. Ela criticou ainda a falta de atenção por parte do Estado. “As secretarias de administração penitenciária são as mais pobres. Só não são mais que as de direitos humanos. Essas são paupérrimas”, ironizou.

(Em breve o áudio das palestras na íntegra.)

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