ARTIGO: Como você sobreviveria em seu país se não tivesse prova de sua existência?

Crianças rohingya brincam no campo de refugiados de Kutupalong, em Bangladesh. Foto: ACNUR/Roger Arnold
Crianças rohingya brincam no campo de refugiados de Kutupalong, em Bangladesh. Foto: ACNUR/Roger Arnold

Por Khaled Hosseini*

Pergunte a si mesmo: como você sobreviveria em seu país de origem se não tivesse prova de sua cidadania ou mesmo de sua existência? Como seus filhos cresceriam com acesso mínimo a uma escola ou mesmo a um hospital?

O que você faria se um dia, após anos de discriminação, sua cidade natal fosse atacada por homens armados? Seus vizinhos mortos enquanto seus filhos olham? Casas totalmente queimadas? Se você é rohingya, você pega seus filhos, pega os pertences que pode carregar e corre para salvar sua vida.

Três anos atrás, foi exatamente isso o que centenas de milhares de rohingya traumatizados tiveram que fazer. Lembro-me de assistir com horror imagens de famílias rohingya fugindo de Mianmar, caminhando descalças pelos campos de arroz, suas vidas nas costas, deixando para trás suas casas, seus meios de subsistência, seus mortos e os amigos e entes queridos muito velhos, muito fracos ou muito abatidos para seguir. Eles chegaram à fronteira exaustos, feridos, traumatizados e precisando de atendimento urgente.

No entanto, mesmo enquanto escrevo isto, estou ciente de que muitas histórias de refugiados se concentram em trauma e fuga. Muitas vezes, no imaginário popular, um refugiado é uma pessoa vulnerável, indefesa, que foge da violência e precisa desesperadamente de resgate.

Essa é uma narrativa incompleta da história e mais uma injustiça com os seus protagonistas. Embora os refugiados de fato precisem de proteção, eles são definidos muito menos por sua condição de beneficiários de cuidados do que por sua insondável coragem, resiliência e desejo de autossuficiência. Isso é verdade para todas as comunidades de refugiados que visitei, sejam sírios, afegãos ou sul-sudaneses, e certamente é verdade para os rohingya.

Desde o início, os refugiados rohingya em Bangladesh assumiram papéis essenciais de liderança na resposta humanitária ao seu próprio sofrimento. Com o apoio do ACNUR, Agência da ONU para Refugiados, e de ONGs parceiras, eles formaram um modelo de proteção baseado na comunidade, dando aos refugiados a oportunidade de ter um certo controle sobre suas próprias vidas e aprender novas habilidades. O modelo deu protagonismo a todos os membros da comunidade rohingya.

Isso foi antes da pandemia do novo coronavírus. O surto de COVID-19 provocou uma redução de 80% dos trabalhadores humanitários nos campos. O papel dos voluntários comunitários rohingya tornou-se, portanto, ainda mais essencial.

Como ex-médico, estou impressionado com os trabalhadores comunitários de saúde refugiados que arregaçaram as suas mangas e se voluntariaram para atender às necessidades de sua comunidade. Eles trabalharam juntos para reduzir o risco de transmissão viral e, dadas as circunstâncias, é nada menos que inspirador.

Veja Salma, de 19 anos, por exemplo. Ela é voluntária de saúde comunitária no campo de refugiados de Kutupalong. Antes da pandemia, ela participou de um programa de voluntariado intergeracional – metade do qual é composto por meninas e mulheres – para fornecer suporte de saúde, incluindo cuidados pré e pós-natal para mulheres e bebês no campo.

Mas, nos últimos meses, ela voltou suas responsabilidades para a resposta à COVID-19. Junto com mais de 1,4 mil outras pessoas, Salma agora promove a lavagem e higiene das mãos. Ela educa a comunidade sobre como o vírus se espalha, como reconhecer os sintomas e buscar atendimento, além de garantir que aqueles que apresentarem os sintomas sejam testados.

Apesar dos desafios de viver em um campo de refugiados densamente povoado, Salma e seus colegas voluntários fizeram uma diferença vital em sua comunidade. No final de julho, havia menos de 100 casos confirmados de COVID-19 entre a população de refugiados rohingya.

Acho isso muito comovente, porque não é muito difícil ver como o trabalho de Salma, do outro lado do mundo, é de fato crítico para o bem-estar e a segurança de minha própria família aqui na América. Visto que uma coisa que todos nós aprendemos nesta pandemia é que ninguém estará seguro contra este vírus até que todos nós estejamos.

Estou comovido e inspirado pela resiliência dos refugiados rohingya. Eles são sobreviventes. Eles escaparam de horrores indescritíveis, fizeram a longa e dolorosa jornada para Bangladesh e superaram as muitas dificuldades da vida nos campos.

Eles continuam a mostrar força em manter a esperança e o compromisso de voltar para casa, contra todas as probabilidades. E agora, a cada dia, sob a sombra de uma pandemia, eles estão trabalhando, liderando, curando e desafiando nossa ideia de “quem é um refugiado”.

*Embaixador da Boa Vontade da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) e autor de vários best-sellers internacionais, incluindo “O Caçador de Pipas” e “A Memória do Mar”