Costa do Marfim: Responsabilização sim, retaliação não – Por Ivan Simonovic

Ivan Simonovic (UN Photo/Ryan Brown)Por Ivan Simonovic, Secretário-Geral Adjunto das Nações Unidas para os Direitos Humanos.

Viajando por Abidjan e pelo oeste da Costa do Marfim semana passada, quando a pressão pela retirada do ex-Presidente, Laurent Gbagbo atingiu seu clímax, era difícil escapar ao cheiro da morte.

No bairro Carrefour, na cidade de Duékoué, observei um poço profundo na sede abandonada de uma das milícias em guerra. Não havia corpos visíveis, mas o cheiro era inconfundível. Ninguém sabe quantos corpos estão lá dentro. O terrível trabalho de recuperar e identificar os corpos ainda deve ser feito.

Em outros lugares, a extensão do banho de sangue já começa a aparecer. Em dois incidentes mortais, o mais recente ocorrido em 28 de março, mais de 300 pessoas foram mortas. Os membros marroquinos das forças de paz enviados aos locais destes massacres encontraram até agora 255 corpos, mas ainda há outros em densas florestas e outros locais inacessíveis. Uma equipe de direitos humanos da ONU também está presente no local, coletando evidências e tentando estabelecer uma ordem dos eventos.

A imagem não é em preto e branco. Informações fornecidas pelo Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos indicam que o primeiro incidente ocorreu na área controlada pelas forças leais ao agora capturado Laurent Gbagbo. As vítimas eram, em sua maioria, membros do grupo étnico Dioula, que tendia a apoiar o rival de Gbagbo, Alassane Ouattara, que é amplamente reconhecido como vencedor das eleições do ano passado, e Presidente legítimo do país. O segundo ocorreu em uma área sob controle das forças aliadas a Ouattara, e as vítimas eram majoritariamente Gueré, que apoiavam Gbagbo. Os mortos foram encontrados com vestimentas civis.

Não se sabe exatamente quantas pessoas foram mortas em Abidjan. A equipe de direitos humanos da ONU na Costa do Marfim estima que o número gire em torno de 400. Cadáveres não têm sido recolhidos de forma sistemática, devido aos riscos persistentes à segurança. Hospitais estão sem muitos suprimentos médicos básicos e os alimentos são escassos, deixando muitas pessoas famintas e com medo. Os membros das forças de paz da ONU utilizaram veículos blindados para evacuar diplomatas e jornalistas pegos pelo combate em Cocody, vizinhança próxima à residência presidencial onde Laurent Gbagbo fez sua última resistência. A população local não teve uma rota de fuga.

O Presidente Ouattara disse que faria tudo que estivesse ao seu alcance para quebrar o ciclo vicioso da violência étnica.

“Vou estabelecer uma comissão de verdade e conciliação, e assegurar que todos os que cometeram algum crime, não importa sua afiliação política ou etnia, sejam responsabilizados”, ele me disse na terça-feira, em Abidjan. “Quero a reconciliação. Vou formar um Governo no qual todas as regiões e grupos étnicos estejam representados.” Desde então, ele tem repetido a promessa em declarações públicas.

Se a verdade sobre os crimes cometidos desde o início do conflito, em setembro de 2002, tivesse sido estabelecida antes e os autores dos crimes responsabilizados, talvez a Costa do Marfim fosse poupada de enfrentar a atual situação.

Uma comissão internacional de inquérito foi estabelecida em 2004, mas seus relatórios nunca se tornaram públicos, nem foram levados ao Conselho de Segurança da ONU. Espera-se que este não seja o caso desta vez. O Conselho de Segurança já solicitou ao Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-moon, que apresente um relatório sobre a investigação independente, encomendada pelo Conselho de Direitos Humanos, e que o compartilhe com outras organizações internacionais. O relatório deverá ser apresentado em meados de junho, mas quantas pessoas poderão ter perdido suas vidas até lá? Será que futuras retaliações poderão ser evitadas?

Com o Presidente Ouattara assumindo o controle efetivo das rédeas do poder após a prisão de Gbagbo, na segunda-feira, há uma renovação da esperança de que a sofrida população da Costa do Marfim possa finalmente enxergar a paz. Mas isto não está, de nenhuma forma, garantido. O Presidente Ouattara e outros líderes políticos em todo o país devem embarcar, imediatamente, na longa e difícil estrada da responsabilização, mas, ao fazê-lo, devem evitar qualquer forma de retaliação.

O ex-Presidente Gbagbo deve ser tratado com dignidade e, se responsabilizado, julgado de acordo com os padrões dos direitos humanos internacionais. Ele não deve ser transformado em bode expiatório: todos os indivíduos envolvidos, não importa sua afiliação política, devem encarar igualmente a justiça. A verdade e a justiça são pré-requisitos para a reconciliação e para a paz sustentável.

A Costa do Marfim é um país rico, com uma forte infraestrutura, que, em sua maioria, permanece intacta. Mas precisará de ajuda substancial de outros países, tanto sob a forma de ajuda humanitária imediata como de assistência em longo prazo para impulsionar sua economia. Espera-se que o país não lute para assegurar a atenção e o financiamento internacional diante das reviravoltas no Norte da África e dos terremotos no Japão.

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Ivan Simonovic é o Secretário-Geral Adjunto das Nações Unidas para os Direitos Humanos.

Artigo publicado no Valor Econômico em 14 de abril de 2011.