Um terrível dilema

António Guterres, Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados

O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) ainda está chocado com o recente e brutal assassinato do nosso colega de equipe Zill-e-Usman, que foi atingido por um atirador não identificado no campo de Katcha Gari, na fronteira das áreas tribais administradas pelo governo do Paquistão, na fronteira noroeste do país. Outro colega de equipe, Ishfaq Ahmad, foi ferido neste mesmo incidente, no último dia 16 de julho. Um guarda que trabalhava para o Comissariado para Refugiados Afegãos, agência financiada pelo governo, também foi morto. Segundo relatos, cerca de quatro ou cinco atiradores abriram fogo contra Usman quando ele retornava do escritório administrativo do campo para o seu carro, em uma visita de rotina ao local.

Usman foi o terceiro funcionário do ACNUR morto neste ano, no Paquistão. No dia 9 de junho, Aleksandar Vorkapic morreu no bombardeio do Hotel Pearl Continental, em Peshawar. No dia 02 de fevereiro, Syed Hashim, motorista do ACNUR, morreu no seqüestro do chefe do escritório de Quetta, John Solecki, que foi posteriormente libertado.

Como escrevi para a família de Usman, sua morte foi um choque cruel. Não há justificativa para ataques a trabalhadores humanitários dedicados à proteção e ao cuidado das pessoas mais vulneráveis do mundo. Sua morte foi um ultraje e uma tragédia que afeta a todos nós.

Neste 19 de agosto, por ocasião do primeiro Dia Mundial da Ação Humanitária, façamos um momento de silêncio para lembrar Usman e outras centenas de funcionários da ONU e de organizações não governamentais que perderam suas vidas enquanto cumpriam suas tarefas ao redor do mundo. A data é importante: foi no dia 19 de agosto de 2003 que uma forte explosão em Bagdá tirou a vida do então Representante Especial da ONU para o Iraque, Sérgio Vieira de Mello, e de outras 21 pessoas.

A constante matança de trabalhadores humanitários levanta importantes questões sobre como podemos garantir a segurança das nossas equipes em ambientes instáveis e inseguros. Em termos globais, este fato nos faz refletir sobre o grande dilema que se impõe às agências humanitárias ao redor do mundo: como responder às necessidades das pessoas mais vulneráveis e, ao mesmo tempo, garantir que os que prestam ajuda estejam em segurança? Nossa habilidade para atender aqueles que mais precisam está sendo severamente testada pela diminuição do assim chamado “espaço humanitário”, no qual devemos trabalhar. A natureza dos conflitos está mudando, com uma multiplicidade de grupos armados – alguns dos quais vêem agentes humanitários como alvos legítimos.

Outro exemplo disso foi o brutal assassinato, no mês passado, de Natalia Estemirova, funcionária da ONG Memorial, parceira do ACNUR na Rússia. Natalia foi encontrada morta na região de Ingushetia, no norte do Cáucaso, após ter sido seqüestrada em sua casa na Chechênia. Desde 2000, além de seu trabalho como pesquisadora em direitos humanos, Natalia vinha trabalhando como assistente social da ONG Memorial em projetos de aconselhamento legal e social em Grozny. Ela trabalhava em questões ligadas aos deslocados internos na Chechênia e seu retorno seguro para suas casas. A Memorial tem sido uma parceira implementadora do ACNUR no norte do Cáucaso desde 2000 e recebeu, em 2004, o Prêmio Nansen – concedido anualmente pelo Alto Comissariado.

Agentes humanitários trabalham nos lugares mais perigosos do mundo e arriscam suas próprias vidas no esforço para ajudar populações vulneráveis a preservarem as suas. Garantir a segurança destas equipes deve ser uma prioridade máxima para qualquer organização humanitária e para as Nações Unidas como um todo. Isso é inegociável.

E ainda assim, com a evolução da natureza dos conflitos e na atitude de alguns atores armados, os ataques deliberados a agentes humanitários têm crescido, estabelecendo uma tensão – e em algumas situações, uma contradição – entre os imperativos de segurança das equipes e a própria ação humanitária. O ACNUR tem lutado continuamente para estabelecer um nível de risco “aceitável” ao qual seus funcionários podem se expor.
Como as comemorações deste Dia Mundial da Ação Humanitária demonstram, este é um dilema verdadeiramente terrível.

Artigo publicado dia 19/08/2009 no jornal Folha de São Paulo.