Crescendo em Bukavu, na República Democrática do Congo, Bertine Bahige estudava muito para se tornar médico. Aos 13 anos, ele já tinha toda a sua vida planejada. Mas tudo mudou no dia em que o grupo rebelde Mai Mai invadiu sua cidade no leste do país, indo de casa em casa para sequestrar jovens que deveriam integrar suas forças armadas.
Com a voz trêmula, Bertine lembra, em entrevista à Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), que esse foi o momento mais difícil de sua vida. “Olhar nos olhos dos seus pais e saber que você está prestes a se separar completamente de tudo que já conheceu na vida”, descreve o congolês.
O garoto passou dois anos em cativeiro. Ao longo desse período, ficou horrorizado com a forma como as crianças espalhavam o terror entre si.
“Você tinha que ser implacável para subir na hierarquia”, conta Bertine. “E esse não é quem eu sou.”
O jovem não conseguiu suportar a violência e decidiu fugir. “Eu sabia que poderia ser o fim, mas eu não podia perder essa oportunidade.”
Bertine viajou por milhares de quilômetros. Cruzou o lago Tanganica no barco de um pescador, que foi solidário e permitiu que ele embarcasse de graça. Escondeu-se na traseira de um caminhão cheio de peixes secos. Durante três dias, isso foi tudo o que Bertine comeu. “Foi a minha primeira refeição gourmet em muito tempo”, brinca o congolês, que consegue rir do que passou.
Exausto, Bertine desmaiou embaixo de uma árvore. Quando acordou, viu-se rodeado de pessoas que falavam uma língua que ele não entendia. O congolês não tinha ideia do país onde estava — Moçambique. Por cinco anos, o jovem morou no campo de refugiados de Maputo, administrado pelo ACNUR.
Após meia década de estadia no acampamento, o refugiados congolês começou a se preocupar com o futuro de sua educação – não existia ensino médio no local. Após algumas entrevistas, Bertine foi informado de que ele seria encaminhado para um programa de reassentamento, mas o menino não tinha certeza sobre o que isso significava.
Em 2004, Bertine desembarcou em Baltimore, no estado de Maryland, nos Estados Unidos. Uma sensação calorosa cresceu dentro dele: “Agora, estou seguro”.
O primeiro trabalho de Bertine foi no Burger King, onde ele começou jogando o lixo fora e, depois, tornou-se caixa.
“Eu sempre me desafiei para conquistar novas coisas”, diz o congolês. “Me foi dada a chance de viver uma vida nova e eu queria aproveitar o máximo possível.”
Trabalhando em três empregos diferentes ao mesmo tempo, Bertine ingressou na faculdade comunitária da cidade e nunca perdeu uma aula. Como ele não tinha um carro, percorria quase dez quilômetros de bicicleta para chegar às aulas noturnas.
O então universitário foi tão bem no curso que conseguiu uma bolsa de estudos para a Universidade de Wyoming. Quando contava a seus amigos sobre o estado, ninguém entendia para onde estava indo. “Você vai para Miami?”, perguntavam.
Mas o Wyoming logo se tornou o lar de Bertine. Na universidade, conheceu sua esposa e, depois de se formar em Matemática, tornou-se professor de ensino médio em Gillette. Hoje, com 38 anos, ele tem dois filhos e é o diretor da Escola de Ensino Fundamental Rawhide.
“Este país deu a chance para alguém que não tinha nada e me deu bênçãos para ser quem sou”, afirma o docente. “Eu vejo como meu dever cívico e minha responsabilidade retribuir essa oportunidade.”
Em uma recente visita a Nova Iorque para uma cerimônia na sede da ONU, Bertine usava um chapéu preto com listras amarelas e roxas e duas letras ‘C’ grandes, costurados na frente. É a logo do colégio de ensino médio onde ele ensinou matemática por dez anos e onde ainda treina o time de futebol após o horário escolar. “Eu precisava resgatar algo de casa”, explica.
O ex-refugiado compartilhou sua história nas Nações Unidas em apoio ao novo Pacto Global sobre Refugiados. O acordo tem como objetivo fortalecer a assistência aos refugiados e aos países que os abrigam. Entre as soluções propostas para crises de deslocamento forçado, o documento recomenda mais oportunidades de reassentamento, como foi o caso de Bertine.
“Há um mal-entendido sobre quem são os refugiados e o que eles estão pedindo. Tudo o que os refugiados pedem é uma oportunidade”, diz o congolês.
“Às vezes, nós olhamos para isso como ‘quanto isso vai me custar?’ Mas nós falhamos em olhar pelo outro lado. O que os refugiados podem trazer? Como eles podem enriquecer nossa comunidade?”
Por conta do que viveu quando criança, Bertine gosta muito de trabalhar com jovens em situação de vulnerabilidade e é capaz de se conectar com eles num nível mais profundo do que um professor regular.
“Eu entendo de onde eles vêm, o que é não ter comida, pensar que é você contra o mundo todo, não entender inglês”, afirma. “Mas eu também entendo que é uma oportunidade para mostrar a eles que eu os entendo, que vamos trabalhar juntos, passo a passo, e que eles podem realmente ter sucesso.”
Seus ex-alunos muitas vezes voltam, mesmo anos depois, pedindo conselhos ou ajudando o antigo professor em algum problema. Nas mídias sociais, os discentes são seus maiores apoiadores e sempre compartilham comentários incríveis sobre o mestre.
No Museu Guggenheim, Bertine discute uma pintura abstrata com sua filha de oito anos, Giselle. A menina enxerga uma borboleta rosa e amarela com as asas abertas, enquanto Bertine acha que a imagem parece mais com uma ostra. O ex-refugiado se encanta com o fato de que a arte desperta a imaginação. “Podemos estar olhando para a mesma coisa e ver algo completamente diferente”, acrescenta.
Pintura após pintura, ele embarca em conversas com sua filha para entender seu ponto de vista e responder às suas perguntas. Mesmo como turista, Bertine não pode deixar de ser quem ele é lá no fundo: um professor.