De criança refugiada em Moçambique a diretor de escola nos Estados Unidos

Bertine Bahige deu aulas de matemática por dez anos, antes de se tornar diretor de uma escola de ensino fundamental em Gillette, no Wyoming. Foto: ACNUR/Cynthia Hunter
Bertine Bahige deu aulas de matemática por dez anos, antes de se tornar diretor de uma escola de ensino fundamental em Gillette, no Wyoming. Foto: ACNUR/Cynthia Hunter

Crescendo em Bukavu, na República Democrática do Congo, Bertine Bahige estudava muito para se tornar médico. Aos 13 anos, ele já tinha toda a sua vida planejada. Mas tudo mudou no dia em que o grupo rebelde Mai Mai invadiu sua cidade no leste do país, indo de casa em casa para sequestrar jovens que deveriam integrar suas forças armadas.

Com a voz trêmula, Bertine lembra, em entrevista à Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), que esse foi o momento mais difícil de sua vida. “Olhar nos olhos dos seus pais e saber que você está prestes a se separar completamente de tudo que já conheceu na vida”, descreve o congolês.

O garoto passou dois anos em cativeiro. Ao longo desse período, ficou horrorizado com a forma como as crianças espalhavam o terror entre si.

“Você tinha que ser implacável para subir na hierarquia”, conta Bertine. “E esse não é quem eu sou.”

O jovem não conseguiu suportar a violência e decidiu fugir. “Eu sabia que poderia ser o fim, mas eu não podia perder essa oportunidade.”

Bertine viajou por milhares de quilômetros. Cruzou o lago Tanganica no barco de um pescador, que foi solidário e permitiu que ele embarcasse de graça. Escondeu-se na traseira de um caminhão cheio de peixes secos. Durante três dias, isso foi tudo o que Bertine comeu. “Foi a minha primeira refeição gourmet em muito tempo”, brinca o congolês, que consegue rir do que passou.

Exausto, Bertine desmaiou embaixo de uma árvore. Quando acordou, viu-se rodeado de pessoas que falavam uma língua que ele não entendia. O congolês não tinha ideia do país onde estava — Moçambique. Por cinco anos, o jovem morou no campo de refugiados de Maputo, administrado pelo ACNUR.

Após meia década de estadia no acampamento, o refugiados congolês começou a se preocupar com o futuro de sua educação – não existia ensino médio no local. Após algumas entrevistas, Bertine foi informado de que ele seria encaminhado para um programa de reassentamento, mas o menino não tinha certeza sobre o que isso significava.

Em 2004, Bertine desembarcou em Baltimore, no estado de Maryland, nos Estados Unidos. Uma sensação calorosa cresceu dentro dele: “Agora, estou seguro”.

O primeiro trabalho de Bertine foi no Burger King, onde ele começou jogando o lixo fora e, depois, tornou-se caixa.

“Eu sempre me desafiei para conquistar novas coisas”, diz o congolês. “Me foi dada a chance de viver uma vida nova e eu queria aproveitar o máximo possível.”

Trabalhando em três empregos diferentes ao mesmo tempo, Bertine ingressou na faculdade comunitária da cidade e nunca perdeu uma aula. Como ele não tinha um carro, percorria quase dez quilômetros de bicicleta para chegar às aulas noturnas.

O então universitário foi tão bem no curso que conseguiu uma bolsa de estudos para a Universidade de Wyoming. Quando contava a seus amigos sobre o estado, ninguém entendia para onde estava indo. “Você vai para Miami?”, perguntavam.

Mas o Wyoming logo se tornou o lar de Bertine. Na universidade, conheceu sua esposa e, depois de se formar em Matemática, tornou-se professor de ensino médio em Gillette. Hoje, com 38 anos, ele tem dois filhos e é o diretor da Escola de Ensino Fundamental Rawhide.

“Este país deu a chance para alguém que não tinha nada e me deu bênçãos para ser quem sou”, afirma o docente. “Eu vejo como meu dever cívico e minha responsabilidade retribuir essa oportunidade.”

Bertine posa com os filhos. Foto: ACNUR/Cynthia Hunter
Bertine posa com os filhos. Foto: ACNUR/Cynthia Hunter

Em uma recente visita a Nova Iorque para uma cerimônia na sede da ONU, Bertine usava um chapéu preto com listras amarelas e roxas e duas letras ‘C’ grandes, costurados na frente. É a logo do colégio de ensino médio onde ele ensinou matemática por dez anos e onde ainda treina o time de futebol após o horário escolar. “Eu precisava resgatar algo de casa”, explica.

O ex-refugiado compartilhou sua história nas Nações Unidas em apoio ao novo Pacto Global sobre Refugiados. O acordo tem como objetivo fortalecer a assistência aos refugiados e aos países que os abrigam. Entre as soluções propostas para crises de deslocamento forçado, o documento recomenda mais oportunidades de reassentamento, como foi o caso de Bertine.

“Há um mal-entendido sobre quem são os refugiados e o que eles estão pedindo. Tudo o que os refugiados pedem é uma oportunidade”, diz o congolês.

“Às vezes, nós olhamos para isso como ‘quanto isso vai me custar?’ Mas nós falhamos em olhar pelo outro lado. O que os refugiados podem trazer? Como eles podem enriquecer nossa comunidade?”

Por conta do que viveu quando criança, Bertine gosta muito de trabalhar com jovens em situação de vulnerabilidade e é capaz de se conectar com eles num nível mais profundo do que um professor regular.

Bertine Bahige, ex-refugiado congolês reassentado nos EUA, foi à sede da ONU, em Nova Iorque, para participar de evento sobre o novo Pacto Global sobre Refugiados. Foto: ACNUR/Andrew Kelly
Bertine Bahige, ex-refugiado congolês reassentado nos EUA, foi à sede da ONU, em Nova Iorque, para participar de evento sobre o novo Pacto Global sobre Refugiados. Foto: ACNUR/Andrew Kelly

“Eu entendo de onde eles vêm, o que é não ter comida, pensar que é você contra o mundo todo, não entender inglês”, afirma. “Mas eu também entendo que é uma oportunidade para mostrar a eles que eu os entendo, que vamos trabalhar juntos, passo a passo, e que eles podem realmente ter sucesso.”

Seus ex-alunos muitas vezes voltam, mesmo anos depois, pedindo conselhos ou ajudando o antigo professor em algum problema. Nas mídias sociais, os discentes são seus maiores apoiadores e sempre compartilham comentários incríveis sobre o mestre.

No Museu Guggenheim, Bertine discute uma pintura abstrata com sua filha de oito anos, Giselle. A menina enxerga uma borboleta rosa e amarela com as asas abertas, enquanto Bertine acha que a imagem parece mais com uma ostra. O ex-refugiado se encanta com o fato de que a arte desperta a imaginação. “Podemos estar olhando para a mesma coisa e ver algo completamente diferente”, acrescenta.

Pintura após pintura, ele embarca em conversas com sua filha para entender seu ponto de vista e responder às suas perguntas. Mesmo como turista, Bertine não pode deixar de ser quem ele é lá no fundo: um professor.