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Discurso de abertura feito pela Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Navi Pillay, em coletiva de imprensa durante a sua missão em Angola

Discurso de abertura feito pela Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Navi Pillay, em coletiva de imprensa durante a sua missão em Angola. Luanda, 24 de abril de 2013. Ela visitou o país de 22 a 24 de abril de 2013. Para ler o original em inglês, clique aqui.

“Boa tarde e obrigada por terem vindo.

Esta é a minha primeira visita em Angola como Alta Comissária para os Direitos Humanos e, creio eu, foi a uma viagem proveitosa. Depois de ouvir sobre o progresso que o país tem feito ao longo dos últimos dez anos, eu queria ver por mim mesma o quanto foi alcançado e quais são os principais desafios que permanecem no alcance dos direitos humanos. Gostaria também de agradecer ao governo pelo convite e oferecê-lo os serviços do meu escritório para encontrar soluções para alguns desses desafios.

Durante a minha visita de três dias, conversei com o Presidente José Eduardo dos Santos, os ministros das Relações Exteriores, Justiça e Direitos Humanos, Interior, Família e dos Assuntos das Mulheres, e do Gabinete do Procurador-Geral. Eu também me reuni com os membros do Tribunal Constitucional, o Provedor de Justiça e o governador da província de Lunda-Norte com quem discuti várias questões relacionadas aos imigrantes em situação irregular, e visitei a fronteira com a República Democrática do Congo.

Pouco depois de chegar aqui no domingo [21], eu organizei uma reunião completa e informativa com cerca de 30 membros de organizações da sociedade civil angolana, alguns dos quais vieram de províncias distantes a fim de participar do encontro.

Desde o fim do conflito em 2002, Angola fez, indiscutivelmente, um grande progresso nos últimos dez anos, auxiliado por abundantes recursos naturais, especialmente o petróleo e os diamantes. O Governo tem investido fortemente em infraestrutura, incluindo escolas, instalações médicas, grandes projetos de habitação, água e eletricidade, melhores prisões e milhares de quilômetros de estradas. O trabalho para remover as muitas milhares de minas que ainda estão enterradas no lindo, fértil e extremamente despovoado interior do país prossegue.

Este desenvolvimento não veio sem controvérsias. Duas questões que sempre chamaram a minha atenção são a enorme disparidade que se desenvolveu entre os mais ricos e os mais pobres, e os métodos, por vezes muito duros, usados para expulsar as pessoas de terrenos destinados ao desenvolvimento, especialmente dentro no entorno de Luanda.

Em minha conversa com o Presidente Santos esta manhã, destaquei a importância de reduzir essas disparidades nos próximos quatro ou cinco anos. Questões relacionadas, como a corrupção, o desemprego, o alto custo de vida e a pobreza extrema precisam ser resolvidas antes que o povo fique desiludido, especialmente os jovens do país.

Em minhas conversas com o governo, eu também enfatizei a necessidade de um contínuo fortalecimento das proteções dos direitos humanos dos cidadãos, já que o desenvolvimento de infraestrutura sem o desenvolvimento paralelo dos direitos humanos é insuficiente e autodestrutivo. Em determinadas circunstâncias, isso pode levar a uma agitação social e política, especialmente se uma faixa cada vez maior da população se sentir excluída dos ganhos econômicos do país.

Estou particularmente preocupada com o fato de que milhões de angolanos não tenham sido registrados, incluindo 68% das crianças menores de cinco anos. Isso tem enormes implicações para a sua futura capacidade de desempenhar um papel ativo na sociedade, receberem benefícios e encontrar um emprego, o que poderia levar a problemas de apatridia. Eu entendo que o governo está tomando medidas significativas para corrigir isso, mas eu peço para torná-lo uma prioridade.

O Presidente me disse que, no final da guerra, houve a necessidade de priorizar a infraestrutura, e que o governo agora pretende se concentrar mais nas famílias e melhorar a vida das pessoas. Números apresentados mostram uma diminuição substancial na pobreza. E, em 2013, o governo também aumentou o orçamento para os serviços sociais.

Angola tem uma nova Constituição, que é forte em matéria de direitos humanos, e um Tribunal Constitucional redefinido para garantir que ela seja cumprida. O governo também está trazendo algumas novas leis para fortalecer as proteções garantidas pela Constituição. Ele tem feito progressos impressionantes sobre os direitos das mulheres, em particular com a promulgação da lei sobre a participação da mulher na vida política, o que fez com que 34% dos parlamentares de hoje sejam mulheres, e uma nova e importante Lei contra a Violência Doméstica, aprovada há dois anos. O governo me forneceu detalhes de sua estratégia para tentar aumentar o impacto dessa lei através de programas de educação e conscientização pública.

No entanto, mais leis novas, emendas às leis existentes e implementações adequadas são necessárias para tirar o máximo benefício de uma Constituição baseada nesses princípios. O acesso à justiça é um problema em muitos níveis, e os benefícios do novo Tribunal Constitucional ainda não estão sendo plenamente alcançados, com muito poucos casos-chave sendo trazidos para estimular melhores mudanças nas leis e instituições de apoio do país.

Ainda há problemas, como por exemplo, no conteúdo, interpretação e aplicação das leis sobre a liberdade de expressão e a liberdade de reunião, com a polícia às vezes suprimindo protestos de forma pesada. Além disso, continuamos a receber relatórios periódicos de casos de detenção arbitrária e uso excessivo da força — especialmente, mas não só, em Cabinda.

Durante esta visita, eu questionei com os ministérios competentes os casos não resolvidos de dois organizadores de um protesto de ex-membros das forças armadas que reivindicavam pensões não pagas. Eles desapareceram logo após um comício em maio de 2012. Eu fui assegurada pelo Ministro do Interior e do Gabinete do Procurador-Geral que uma investigação foi iniciada, e espero que em breve haja uma luz sobre o que aconteceu com os dois homens, e que todos os responsáveis por abusos, neste caso, sejam levados à justiça. É imperativo que sempre que há denúncias de abusos por parte das autoridades, ocorram investigações credíveis e transparentes, e que, quando os abusos forem confirmados, os seus autores sejam plenamente responsabilizados perante a lei.

Enquanto os meios de comunicação e, principalmente, os meios de comunicação privados, geralmente são livres para criticar as autoridades em Angola, a lei sobre difamação é uma ameaça ao jornalismo investigativo, e seria melhor substituída por uma lei mais clara sobre o incitamento, o que pode ser um crime. O direito internacional (artigos 19 e 20 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos) estabelece um limite muito alto em termos de quando podem ser colocados limites à liberdade de expressão. Também são necessários esforços para suspender as restrições e ampliar o alcance da mídia independente — especialmente rádio e TV — e para aumentar o acesso de diferentes pontos de vista aos meios de comunicação estatais. A mídia livre e pluralista é um componente essencial de uma democracia multipartidária, e eu peço para que o governo respeite a dissidência.

Uma sociedade civil forte é também vital para uma democracia próspera, e organizações da sociedade civil estão se sentindo claramente vulneráveis e, portanto, limitadas em Angola. A liberdade de reunião, a liberdade de manifestação e a liberdade para investigar e expor os possíveis abusos não devem ser prejudicadas por ameaças e intimidações por parte das autoridades. Espero que o governo estabeleça um diálogo mais construtivo com a sociedade civil.

Angola aboliu a pena de morte há mais de 20 anos. O país também ratificou os mais importantes tratados internacionais de direitos humanos, com as duas exceções notáveis para a Convenção contra a Tortura e a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial. Apesar de eu não perceber que a tortura ou a discriminação racial sejam grandes problemas em Angola, aderir a esses dois tratados demonstraria claramente que o governo está comprometido para que eles nunca se tornem uma questão. Eu peço que o governo ratifique ambas as convenções.

Como mencionei anteriormente, a apropriação de terra para o desenvolvimento é uma questão que frequentemente desperta preocupações. Reconheço que o governo deve liberar terras para a realização de projetos necessários para a construção e o desenvolvimento de uma economia próspera, moderna. No entanto, as pessoas nunca devem ser despejadas e suas casas demolidas sem consulta prévia, remuneração adequada e habitação alternativa disponibilizada.

Muitos assentamentos informais em Angola são o produto de deslocamentos causados pela guerra ou pela extrema pobreza. As pessoas que vivem neles precisam ser tratadas com sensibilidade. Questões como a proximidade de seu novo local de residência com o seu local de trabalho precisam ser levados em conta, ou então os seus meios de subsistência podem ser destruídos junto com suas casas e dignidade. Existem normas internacionais claras sobre a apropriação de bens e realocação de pessoas.

Sugeri ao governo a visita da Relatora Especial da ONU sobre o Direito à Moradia Adequada, e estou feliz que eles tenham aceitado tal visita. Missões feitas por outros peritos independentes nomeados pelo Conselho de Direitos Humanos — da qual Angola é atualmente um membro — também podem ser de grande benefício.

O outro grande problema que tenho discutido em profundidade durante a minha visita são as persistentes alegações de abusos — especialmente sexual — cometidos por membros das forças de segurança e os oficiais de fronteira. Aceito plenamente que a entrada irregular de dezenas de milhares de migrantes em Angola todos os anos, muitos deles buscando a escavação ilegal de diamantes, está causando grandes problemas para o governo, que tem o direito de definir os limites de migração para regular uma indústria-chave.

Ele também tem o direito de deportar imigrantes em situação irregular, mas deve fazê-lo de forma humana e em plena conformidade com as leis internacionais de direitos humanos. Eu apoio os esforços para resolver esta questão extremamente complexa e difícil a nível regional, e concordei em levantar a questão para uma cooperação mais estreita com a RDC, de onde cerca de 80% dos imigrantes que entram em Angola se originam.

Mas a necessidade de combater as violações dos direitos humanos contra os migrantes em território angolano é da responsabilidade do governo de Angola. Durante a minha visita a uma remota fronteira próxima a Lunda-Norte, recebi indicações de que o abuso sexual de mulheres migrantes continua, bem como o roubo de propriedade. Alegações de abuso sexual de mulheres migrantes ao longo desta fronteira têm persistido durante a maior parte dos últimos dez anos.

Enquanto a escala do problema pode ser contestada, um estupro representa muitos estupros, especialmente quando realizado por um membro das forças de segurança que deveria proteger os civis de crimes. Eu acredito que uma investigação plena e transparente na fronteira está muito atrasada. É preciso haver maior esforço para sensibilizar guardas e policiais de fronteira, e para deixar claro que tais crimes não serão mais tolerados. Qualquer um que tenha abusado sexualmente de qualquer mulher, incluindo as migrantes em situação irregular, deve sentir toda a força da lei.

Uma maneira de melhorar as leis de direitos humanos de Angola, e acompanhar a sua implementação efetiva, seria a criação de uma verdadeira Instituição Nacional de Direitos Humanos (INDH), de acordo com o sistema internacional conhecido como Princípios de Paris. Existem hoje mais de 100 países com tais instituições em todo o mundo, mas Angola não está entre eles. Eu ofereci meus serviços para ajudar a estabelecê-lo, uma vez que os INDHs podem desempenhar um papel verdadeiramente vital no reforço dos direitos humanos — por exemplo, referindo os casos-chave para os Tribunais, assessorando na elaboração de legislação e apoiando as organizações da sociedade civil.

Eu também manifestei a minha vontade, e a do Coordenador Residente das Nações Unidas, para apoiar a nomeação de um Conselheiro de Direitos Humanos do meu escritório para trabalhar em Angola. Eu fico feliz com a resposta positiva do governo a esta sugestão, uma vez que Conselheiros de Direitos Humanos também podem fornecer um apoio inestimável para os governos e Equipes de País da ONU.

Apesar da natureza sensível de alguns dos tópicos que levantei, eu achei o Presidente e seus ministros muito empenhados, e as nossas discussões foram extremamente construtivas. O governo aceitou prontamente que os problemas permanecem e discutimos formas de fazer as melhorias necessárias.

Em geral, minha impressão no final desta visita é que o governo de Angola está verdadeiramente empenhado em melhorar os direitos humanos. Se o governo criar uma robusta Instituição Nacional de Direitos Humanos, se o Tribunal Constitucional for habilitado para fizer jus ao seu potencial, e se as outras instituições-chave do Estado continuarem a lutar pelas melhorias, eu acredito que Angola pode tornar-se um modelo não apenas para a região, mas para muitos outros países também.

Obrigada.”

Dia dos Direitos Humanos 2012, por Navi Pillay

Declaração da Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Navi Pillay, para o Dia dos Direitos Humanos – 10 de dezembro de 2012. (ONU/Jean-Marc Ferré)

Declaração da Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Navi Pillay, para o Dia dos Direitos Humanos – 10 de dezembro de 2012.

“Milhões de pessoas têm ido às ruas ao longo dos últimos anos, em países em todo o mundo, encorajados pelo que está acontecendo em outros lugares, alguns exigindo direitos civis e políticos, outros exigindo direitos econômicos, sociais e culturais.

Esta onda popular não é simplesmente uma questão de pessoas exigindo liberdade de expressão ou liberdade de dizer o que pensam, ou deixar claro o que querem.

Pedem muito mais do que isso. Pedem o fim de uma situação em que os governos simplesmente decidem o que é conveniente para suas populações, sem sequer consultá-las. Elas estão pedindo o seu direito de participar plenamente nas decisões e políticas internacionais, nacionais e locais, que afetam seu cotidiano. Muitas pessoas, em muitos países, têm expressado claramente que estão cansadas que seus líderes as tratem com desprezo e ignorem suas necessidades, ambições, medos e desejos.

Pedem, de fato, o que por mais de 60 anos, sob o direito internacional, é um direito de todos. Exigem os direitos humanos estabelecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) – cujo aniversário se comemora sempre em 10 de dezembro – e que foram desenvolvidos posteriormente em outros tratados internacionais juridicamente vinculantes.

Todos os cidadãos devem ter o direito e a oportunidade de participar na gestão dos assuntos públicos, diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos. Toda pessoa tem o direito de votar e de ser votada, e de ter acesso ao serviço público, bem como à liberdade de expressão, reunião e associação. Estes estão entre os direitos consagrados no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, do qual fazem parte 167 Estados. São direitos que têm sido reiterados de muitas formas similares em outras leis e documentos.

Esses direitos deveriam se aplicar a todos. Ninguém deve ser excluído de qualquer deles, porque é do gênero feminino, por pertencer a uma minoria, ou crer em uma determinada religião; ou porque é gay, tem uma deficiência, tem particulares convicções políticas; ou porque é migrante ou pertence a um determinado grupo racial ou étnico. Nós todos devemos ter uma voz que se faça ouvir em nossas sociedades. Todos devemos ter participação livre, ativa e significativa, tanto nos assuntos econômicos como nos políticos.

Infelizmente, muitas pessoas não têm.

Em vez disso, são ignoradas. Ou, pior que isso, são perseguidas, e quem tenta ajudá-las a conquistar seus direitos – os defensores dos direitos humanos – são intimidados, ameaçados e igualmente perseguidos. Às vezes de modo menos deliberado, mais insidioso: a certos indivíduos ou grupos simplesmente não é dada a oportunidade: a oportunidade de levantar a voz, ou usar seus cérebros e talentos para alcançar os sucessos de que são capazes, para sair da pobreza ou alcançar um alto cargo – ou mesmo um cargo.

Muitos milhões de pessoas não podem sequer sonhar com objetivos mais ambiciosos – elas sonham apenas em sobreviver até o dia seguinte.

Ou pode ser porque não foram à escola, ou porque não têm cuidados de saúde, abrigo adequado, alimentos e nenhum dos direitos e serviços básicos que lhes dariam a oportunidade de construir um futuro melhor.

Ou pode ser porque são excluídos de aproveitar as oportunidades especificamente por leis ou práticas discriminatórias. Ou porque, não por culpa própria, são apátridas, cidadãos de lugar algum e, portanto, não só não têm uma voz, mas não existem oficialmente.

Ou pode ser simplesmente porque os seus líderes estão tão focados em seu próprio apego ao poder e à riqueza que simplesmente não se importam com o que acontece com aquelas pessoas cujas vidas eles governam. Eles darão apenas o suficiente para manter as pessoas em silêncio e impedi-las de protestar. E se as pessoas são obstinadas e levantam a sua voz, eles vão prendê-las, torturá-las ou encontrar outras formas de distraí-las, silenciá-las ou fazê-las desaparecer.

No entanto, nos últimos dois anos, as pessoas em muitos países fortaleceram suas posições, deixando claro que “apenas o suficiente” já não é mais suficiente. Em muitos países, as pessoas têm enfrentado seus governos nas ruas, não apenas no Oriente Médio e Norte da África, mas em outras partes do mundo, em questões que cobrem toda a gama de direitos fundamentais civis, políticos, sociais, culturais e econômicos.

Em vários países, nos últimos meses, continuamos a ver os exemplos mais extremos de direitos sendo rebaixados. Milhares de homens, mulheres e crianças torturados até a morte, estuprados, bombardeados, atacados com artilharia, forçadas a deixar suas casas, privados de cuidados, de alimentos, água, eletricidade e saúde pelos seus próprios governos ou por grupos armados, impulsionados, aparentemente, por nada mais do que sua própria manutenção no poder. Estes são governos e atores não estatais que continuam a se comportar de uma maneira que é a completa antítese de tudo o que se comemora no Dia dos Direitos Humanos.

Hoje, eu saúdo todos aqueles que sofreram tanto buscando o que é deles por direito, e todas as pessoas de outros países que de sua própria maneira – seja em Santiago ou no Cairo, em Atenas ou Moscou, em Nova York ou Nova Deli – também estão dizendo que temos uma voz, temos nossos direitos e queremos participar da forma como nossas sociedades e economias são administradas.

Porque é assim que deve ser.”

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Navi Pillay é a Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos. O tema para o Dia dos Direitos Humanos de 2012 é “Inclusão e o direito de participar na vida pública”. Saiba mais em www.onu.org.br/direitoshumanos

Acesse a mensagem também em espanhol (http://bit.ly/WM0FRe), inglês (http://bit.ly/SJ9oFD) e francês (http://bit.ly/SJ9vRy).

‘Ao deixar o preconceito e o racismo ferverem em banho-maria, surge o risco real da erupção do conflito’

Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Navi Pillay. Mensagem em ocasião do Dia internacional para a Eliminação da Discriminação Racial, comemorado em 21 de março de 2012.

A relação entre racismo e conflito é uma relação profundamente enraizada e bem estabelecida. Certo número de estudos mostrou que um dos primeiros indicadores de violência potencial é o desprezo pelos direitos das minorias. Uma pesquisa promovida por uma organização não governamental indicou que mais de 55% dos conflitos violentos de intensidade significativa entre 2007 e 2009 tinham as violações dos direitos das minorias ou tensões entre comunidades no centro da violência.

Apenas no último ano, vimos vários exemplos terríveis de violência étnica no meio de conflitos em muitos países do mundo. Na última semana, em uma visita a Guatemala, presenciei as consequências trágicas e duradouras de práticas históricas de racismo contra povos indígenas e afrodescendentes. A Guatemala ainda está lidando com o legado de 36 anos de conflito armado.

Prevenir tal conflito é claramente mais desejável do que as tentativas posteriores de apagar as chamas e começar os difíceis processos de reconstrução, reconciliação e justiça – isso sem mencionar os custos humanos e sociais. Entretanto, o problema é que os avisos prévios em relação ao preconceito e à discórdia são frequentemente ignorados, e só quando os mais sinistros e tardios sinais começam a emergir é que o Estado e a comunidade internacional começam a reagir.

Vinte anos atrás, a Declaração sobre os Direitos de Pessoas pertencentes a Minorias Nacionais, Étnicas, Religiosas e Linguísticas reconheceu claramente a ligação entre estabilidade política e social e a promoção e a proteção dos direitos das minorias nacionais, étnicas, religiosas e linguísticas. Os Estados também reconheceram através da Declaração e do Programa de Ação estabelecidos em Durban, em 2001, que o racismo e a discriminação estão entre as causas primárias de muitos conflitos nacionais e internacionais. Uma olhada através dos primeiros arquivos e relatórios de alerta do Comitê sobre Eliminação da Discriminação Racial se torna uma trágica leitura dos tipos de conflitos que poderiam ter sido evitados se essas advertências iniciais tivessem sido atendidas.

Neste Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial, peço que os Estados prestem atenção aos alertas prévios sobre preconceito, estereótipos, ignorância e xenofobia. Peço que eles tratem urgentemente da marginalização e exclusão de indivíduos pertencentes a certas comunidades das tomadas de decisões econômicas e políticas. Peço que se estabeleça um processo de consulta e um constante diálogo com todas as partes da sociedade, e que os esforços para garantir o acesso aos empregos, acesso à terra, acesso aos direitos políticos e econômicos não fique restrita de acordo com as características de raça, cor ou nacionalidade das pessoas. Peço também que os projetos de desenvolvimento não desfavoreçam desproporcionalmente uma comunidade em particular.

Essas não são obrigações novas para os Governos, mas são há muito tempo parte dos compromissos com os direitos humanos assumidos pelos Estados. Deixando os perigosos problemas sociais do preconceito e do racismo ferverem em banho-maria, surge um risco real da erupção de conflitos explosivos, anos ou décadas depois.
Racismo e preconceito podem fornecer, promover e perpetuar as narrativas que criam e sustentam conflitos – seja no mundo desenvolvido ou em desenvolvimento. Não esperemos que os ressentimentos se transformem em violência ou o preconceito se torne um genocídio antes de decidirmos agir.

Direitos humanos e desenvolvimento no pós-Primavera Árabe (Navi Pillay)

Navi Pillay, Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos

Há momentos na história em que cada um de nós é chamado para declarar de que lado está. Eu acredito que aí está um desses momentos.

Ao longo do último ano, em Túnis, Cairo, Madri, Nova York e em centenas de outras cidades em todo o mundo, a voz de pessoas comuns se levantou e suas demandas se tornaram claras. Elas querem os direitos humanos no centro de nossos sistemas econômicos e políticos, a chance de uma participação significativa nas relações públicas, uma vida digna e a libertação do medo e da privação.

A chama que acendeu o fogo da Primavera Árabe, que eventualmente se espalharia pelas cidades em todo o mundo, foi o ato desesperado de um único ser humano que, tendo negados os elementos mais básicos de uma vida com dignidade, ateou fogo a si e, ao fazê-lo, declarou que uma vida sem direitos humanos não é uma vida de verdade.

As ações, as omissões e os excessos dos governos da região estavam no centro. E as ações dos Estados poderosos fora da região, que apoiaram regimes autoritários e políticas destrutivas em interesse próprio fomentando a repressão, a impunidade, o conflito e a exploração econômica, também desempenharam papel chave.

Mas, em nível internacional, as avaliações fornecidas por instituições financeiras e agências de desenvolvimento no período que antecedeu à Primavera Árabe também são esclarecedoras: a Tunísia, foi dito, demonstrou “um progresso notável no crescimento da equidade, no combate à pobreza e no alcance de bons indicadores sociais.” Ela estava no caminho para cumprir os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Ela estava “bem avançada em termos de governança, eficácia, Estado de Direito, controle da corrupção e qualidade regulatória”. Ela era “uma das sociedades mais equitativas” e “uma grande reformadora”. Em geral, nos foi dito, “o modelo de desenvolvimento que a Tunísia buscou nas últimas duas décadas fez bem ao país”.

Ao mesmo tempo, a ONU e os monitores dos direitos humanos da sociedade civil mostravam comunidades excluídas e marginalizadas, humilhações e negação dos direitos econômicos e sociais. Ouvimos falar de desigualdade, discriminação, falta de participação, falta de empregos decentes, falta de direitos trabalhistas, repressão política e negação de reunião livre, de associação e de discurso. Encontramos censura, tortura, detenção arbitrária e a falta de um Judiciário independente. Em suma, ouvimos sobre medo e privações. Ainda assim, de alguma forma, esse lado da equação teve muito pouca influência em nossa análise de desenvolvimento.

Isso não quer dizer que a análise de desenvolvimento estava completamente errada, ou que os dados estavam imprecisos. O problema era que as lentes analíticas eram muitas vezes estreitas e por vezes simplesmente apontavam o caminho errado. Claramente elas não foram fixadas diretamente na libertação do medo e da privação — ao menos não para a maioria.

Ao invés disso, elas estiveram focadas muito estritamente no crescimento, nos mercados e no investimento privado, com relativamente pouca atenção para a equidade e sem foco para os direitos civis, políticos, econômicos e sociais. Mesmo onde a atenção estava direcionada para os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, isso forneceu apenas um conjunto muito restrito de indicadores econômicos e sociais, nenhum deles baseado em direitos, todos com baixos limiares quantitativos, nenhum garantindo processos participativos e nenhum acompanhado de responsabilidade legal.

Essencialmente, as análises não encontraram respostas erradas, elas apenas não perguntaram muitas das questões importantes.

E essa miopia política tem sido repetida em países do Norte e do Sul, em que líderes políticos parecem ter esquecido que cuidados da saúde, educação, habitação e a boa administração da justiça não são commodities à venda para os poucos, mas direitos aos quais todos têm direito, sem discriminação. Tudo que fizermos em nome de políticas econômicas ou de desenvolvimento deve ser projetado para avançar esses direitos e, em última instância, não devem fazer nada para prejudicar sua realização.

Quando a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada, em 10 de dezembro de 1948, os autores alertaram que, “para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão, os direitos humanos devem ser protegidos pelo Estado de Direito.” A declaração definiu os direitos necessários para uma vida de dignidade, livre do medo e da privação — dos cuidados com a saúde, educação e habitação, à participação política e à boa administração da justiça. Ela disse que esses direitos pertencem a todas as pessoas, em todos os lugares, sem discriminação.

Hoje, nas ruas de nossas cidades, as pessoas estão exigindo que os governos e as instituições internacionais cumpram essa promessa, com suas demandas transmitidas ao vivo pela internet e pelas mídias sociais. Ignorar essas demandas não é mais uma opção.

De preferência, os governos e as instituições internacionais devem acompanhar sua liderança fazendo mudança política drástica na direção de uma integração robusta dos direitos humanos nos assuntos econômicos e na cooperação para o desenvolvimento, e adotando a lei dos direitos humanos como a base para a governança interna e como fonte de coerência política em todo o sistema internacional. Essa é nossa demanda para o novo milênio. Esse é o imperativo Túnis.

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Artigo publicado dia 5 de dezembro de 2011 no jornal Correio Braziliense.

Ninguém está imune ao racismo (Navi Pillay)

Ninguém está imune ao racismo (Por NAVI PILLAY)Na cidade americana de Jackson, em junho, adolescentes brancos espancaram, atropelaram e mataram um negro de 49 anos. A razão para tamanha brutalidade? De acordo com os promotores, o grupo estava em missão para “encontrar e ferir uma pessoa negra”. Câmeras registraram o incidente assustador.

Esse é apenas um dos muitos casos de violência racista cometidos diariamente. Apesar de décadas de luta, dos esforços de diversos grupos e nações e da evidência do terrível custo do racismo, ele persiste. Nenhuma sociedade está imune.

Nesta quinta-feira, líderes mundiais terão a oportunidade de estimular o combate ao racismo ao comemorar o décimo aniversário da adoção da Declaração e Programa de Ação de Durban (DDPA), aprovada por consenso na Conferência Mundial Contra o Racismo, em 2001. Os Estados-membros concordaram em combater a xenofobia, a discriminação contra imigrantes, povos indígenas, ciganos e afrodescendentes, além daquela baseada na ascendência.
Em 2009, os países reavaliaram o caminho estabelecido pela DDPA, revigoraram e expandiram suas promessas em um documento que fortalecia a agenda antirracismo e reafirmaram a necessidade de situar a discussão dentro do contexto da lei internacional dos direitos humanos.

Em muitos países, o quadro e o processo estabelecidos pela DDPA têm sido fundamentais para a melhoria das condições de muitos grupos vulneráveis. Mas a implementação dos compromissos ainda é irregular e insatisfatória.

Hoje, vemos a intolerância emergindo em novas formas, como o tráfico humano. Refugiados, solicitantes de asilo, trabalhadores migrantes e imigrantes sem documento são cada vez mais estigmatizados, quando não criminalizados. A xenofobia está em ascensão.

Em sua pior faceta, a manipulação da diversidade tem alimentado conflitos armados, bem como o surgimento de enfrentamentos comunais violentos.

Na condição de ex-juíza e presidente do Tribunal Penal Internacional para Ruanda, vi como comunidades podem ser aniquiladas pelo ódio. Mas também me deparei com magníficos atos de bravura.

Um episódio está profundamente gravado em minha memória. Ele ocorreu no noroeste de Ruanda, quando hutus atacaram uma escola e ordenaram aos alunos que se separassem em grupos de etnia hutu e tutsi. Os estudantes se recusaram a identificar sua etnia para não trair seus colegas. Dezessete meninas foram mortas como resultado de sua corajosa atitude.

Como podemos ser dignos dessas crianças? Acredito que precisamos trabalhar juntos para alcançar um ambiente de respeito e promoção da igualdade, da justiça e da não discriminação.

Esses imperativos estavam em minha mente quando fui a Yad Vashem durante minha passagem por Israel, em fevereiro. Essa visita ofereceu um lembrete poderoso de que o ódio racial, os crimes contra a humanidade e o genocídio nunca devem ser tolerados, e que o Holocausto nunca deve ser esquecido. A DDPA contém tal apelo. Ela exorta ao uso da memória do Holocausto como força transformadora e a colocar seu legado a serviço de um futuro livre do racismo.

Um mês depois, visitei a ilha Goree, no Senegal. Trata-se da infame “porta sem retorno” pela qual inúmeros africanos foram enviados acorrentados às Américas. A ONU dedica o presente ano à população afrodescendente, mas nunca poderemos fazer plena justiça aos milhões de vítimas do preconceito e da intolerância -e a seus descendentes, que ainda enfrentam o legado da discriminação. O que podemos é assegurar que seu sofrimento seja um apelo para enfrentar o sofrimento dos outros, hoje e no futuro.

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NAVI PILLAY é Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo em 19 de setembro de 2011.